- Segunda Parte -
23. O princípio e o fim do aprendizado.
Será importante chamar a atenção de um modo especial para o fato de que, analisado sob a perspectiva de uma compilação de pontos de referência organizados pelo próprio Hugo, o Opúsculo sobre o Modo de Aprender é particularmente claro ao apontar quais sejam tanto o princípio como o fim do caminho do aprendizado.
A finalidade do aprendizado, aquilo em função do qual tudo se coordena e para o qual tudo se dirige, é a contemplação, apresentada como uma operação da inteligência, posterior a outras mais elementares, que se estende simultaneamente a uma multidão ou mesmo à totalidade de todas as coisas.
Devemos notar aqui a diferença desta explicação do que seja a contemplação em relação a outras que anteriormente já tivemos a oportunidade de comentar. Já havíamos exposto a contemplação como sendo aquilo a que se referia a expressão de Cristo ao ensinar que Deus deve ser "adorado em espírito e verdade"; já apresentamos a contemplação também como sendo um exercício intenso e simultâneo das virtudes da fé, esperança e caridade. Agora, porém, Hugo de São Vitor diz que a contemplação é uma operação da inteligência que,
"já possuindo todas as coisas,
as abarca em uma visão
plenamente manifesta".
A aparente diferença destas definições se deve ao fato de que elas são aspectos diversos da imensa riqueza de uma mesma realidade.
O princípio do aprendizado, por outro lado, aquilo sem o qual nada pode ser empreendido com esperança fundada de se poder chegar ao seu termo que é a contemplação, diz Hugo de São Vitor, é a humildade. A primeira afirmação do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, de fato é que
"a humildade é o princípio
do aprendizado".
Esta afirmação tem uma relação evidente com outra do mesmo autor, contida em outro opúsculo intitulado "Os Frutos da Carne e do Espírito".
O opúsculo sobre "Os Frutos da Carne e do Espírito" vem acompanhado de dois desenhos que ilustram e resumem perfeitamente bem todo o seu conteúdo. Estes dois desenhos representam duas árvores, às quais Hugo denomina de a árvore dos vícios e a árvore das virtudes. Na primeira árvore, a dos vícios, vemos uma raíz na qual se encontra escrito:
"Orgulho,
raíz dos vícios".
Subindo pelo tronco, encontram-se ramos maiores e menores, com os seus respectivos frutos, que representam os diversos vícios que surgem todos da raíz do orgulho, e, por último, na copa da árvore toda, o fruto final da luxúria.
Na segunda árvore, a das virtudes, vemos também uma raíz na qual encontra-se escrito:
"Humildade,
raíz das virtudes".
Subindo pelo tronco, encontram-se também ramos maiores e menores, com seus respectivos frutos, que representam as diversas virtudes que surgem todas da raíz da humildade, e, por último, na copa da árvore toda, o fruto final da caridade.
O objetivo do Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito é, de fato, mostrar claramente ao leitor o princípio de que a "humildade é a raíz de todas as virtudes", um objetivo que, no prólogo deste texto, Hugo de São Vitor diz que é também o das Sagradas Escrituras:
"Todos os discursos da Divina Página",
diz Hugo,
"pretendem persuadir o homem
do bem da humildade e afastá-lo
o mais atentamente possível
do mal do orgulho.
O principal motivo para isto é que
a humildade é o princípio
da salvação e da vida,
e o orgulho é o princípio da ruína.
Queremos, pois, mostrar ao homem
que se dedica ao cultivo das virtudes
o fruto e a eficácia
(não só) da humildade
(como também) do orgulho,
para que ele possa tê-los diante dos olhos
sob uma forma visível.
O imitador de ambas estas coisas
poderá assim conhecer,
pela qualidade dos seus frutos,
que recompensa alcançará
pela prática delas.
Consideradas as raízes,
os ramos e os frutos,
caberá a ti escolher
aquilo que quiseres".
Deve-se notar, entretanto, que no Opúsculo sobre o Modo de Aprender Hugo não diz que a humildade é o princípio de todas as virtudes, mas o princípio de todo o aprendizado. De ambas estas afirmações pode-se concluir a estreita relação que existe entre o aprendizado, no sentido em que o entende Hugo de São Vitor, e a vida das virtudes, pois de ambas estas coisas ele, em momentos diferentes, afirma que surgem e se desenvolvem a partir de uma mesma raíz comum. Uma multidão de passagens de toda a obra de Hugo de São Vitor nos mostram que ele efetivamente sempre ensinou existir uma estreita relação entre ambas estas realidades. Comentando, por exemplo, a luta de Jacó com um anjo, descrita em Gênesis 32, episódio em que o anjo trocou-lhe o nome para Israel, Hugo de São Vitor escreve:
"São Israel todos aqueles que vêem a Deus,
com a condição de que o vejam
com ambos os olhos,
isto é, com os olhos
do conhecimento e do amor.
Se queres, portanto,
ser guardado por Deus,
contempla-o com ambos estes olhos,
os olhos do conhecimento e do amor,
da fé e da obra,
da razão e da boa vontade,
da ciência e da sabedoria,
do julgamento e da justiça,
da inteligência e do afeto.
Aquelas primeiras coisas que mencionamos
dizem respeito ao que em nós é a verdade,
estas segundas ao que em nós é a bondade;
com aquelas somos luz,
com estas somos calor.
São também a estes dois olhos
que os salmos se referem
quando nos dizem:
`O Senhor se inclinou do céu
sobre os filhos dos homens,
para ver se havia alguém
que tivesse entendimento
e que buscasse a Deus' (Salmo 13,2)."
Sermo 48, PL 177
Deste modo, numa obra em que, ao que tudo indica, foi escrita para compilar pontos de referência fundamentais que não deveriam ser perdidos de vista pelos estudantes, a precisa determinação do primeiro princípio e da finalidade última de todo o trabalho pedagógico não poderia estar ausente. A humildade é claramente apontada por Hugo de São Vitor como sendo simultaneamente o princípio tanto do aprendizado como de todas as virtudes, as duas vertentes da vida espiritual pela qual o homem, pela verdade e pela bondade, pelo conhecimento e pelo amor, se dirige para o seu fim último que é a contemplação.
24. Relação entre fé e humildade.
A noção segundo a qual a humildade é o primeiro princípio não só do aprendizado, mas também de toda a vida espiritual da qual o aprendizado é um aspecto, não é própria de Hugo de São Vitor, mas comum a toda a tradição cristã e particularmente muito clara em Santo Agostinho, de onde provavelmente Hugo de São Vitor a recebeu em toda a sua luz.
No entanto, há muitas afirmações igualmente claras tanto nas Escrituras como na tradição cristã de que é a fé, e com isto aparentemente não a humildade, o primeiro princípio da vida espiritual. Assim é que na Epístola aos Hebreus encontra-se escrito que
"Sem fé é impossível agradar a Deus,
porque é necessário
que o que se aproxima de Deus
creia que Ele existe
e que é remunerador
daqueles que o buscam",
Heb. 11, 6
colocando-se com isto, como é de fato, que a fé é o primeiro dos requisitos da vida espiritual. Nos Evangelhos Cristo repete constantemente àqueles aos quais concede um milagre que havia sido "a sua fé que os salvou", e ao longo das suas epístolas São Paulo repete incessantemente que é pela fé que o homem se justifica; ora, a justificação é o próprio início da vida espiritual. Ademais, sem a graça não se pode falar da vida espiritual, e é um dado que já foi várias vezes comentado entre nós que a fé é o primeiro dos efeitos que se manifestam na alma humana pelo trabalho da graça, num sentido análogo àquele em que diz o Gênesis, ao narrar a criação do mundo, que logo após Deus ter criado o céu e a terra, seu espírito pairou sobre a mesma; disse então Deus:
"Exista a luz",
e a "luz existiu" (Gen. 1,3).
E se tudo isto é realmente assim, deve-se então dizer que é a fé, e não a humildade, que é o primeiro princípio da vida espiritual. Como explicar, pois, diante disto, que Hugo de São Vitor, fazendo eco de Santo Agostinho e do conjunto da tradição cristã, diga que este princípio é a humildade?
Deve-se responder a isto dizendo que, ontologicamente falando, é efetivamente a fé, e não a humildade, o primeiro princípio da vida espiritual, porque a vida espiritual não se inicia sem o trabalho da graça e a primeira e mais elementar de todas as manifestações da atividade da graça no homem é aquilo a que chamamos de fé, e não a humildade. A humildade não necessariamente requer a atividade da graça para poder existir no homem, embora na prática seja muito auxiliada por ela e dificilmente encontra-se num grau elevado sem a sua presença. Mas em princípio o homem pode possuí-la apenas por sua própria natureza, apenas por ser homem, ao contrário da fé, a qual não pode se dar sem o auxílio sobrenatural da graça. A vida sobrenatural no homem principia, portanto, necessariamente pela fé e não pela humildade.
No entanto, a Sagrada Escritura ensina também constantemente que Deus se aproxima dos humildes e se afasta dos orgulhosos. Não se aproxima, neste sentido, fisicamente, pois Deus já está em toda a parte, por ter a tudo criado do nada e a tudo continuamente conservar em sua existência. Deus aproxima-se, porém, pela graça, com o que concede aos homens participarem de sua própria vida divina, graça cuja primeira manifestação é a luz da vida da fé. A humildade é assim, neste sentido, não o próprio início da vida espiritual, mas uma predisposição para recebê-la.
É neste sentido que no início do Opúsculo sobre os Frutos da Carne e do Espírito Hugo de São Vitor sequer chama a humildade de virtude, embora de fato seja uma virtude, mas apenas de o fundamento delas, enquanto que é à fé que ele chama de a primeira de todas as virtudes, embora efetivamente a fé seja a primeira das virtudes apenas se estas forem tomadas no plano propriamente sobrenatural:
"A humildade é o fundamento
de todas as virtudes",
diz Hugo de São Vitor,
"porque,
conforme diz o Evangelho
de São Lucas,
`Todo o que se humilha
será exaltado', e
Lucas 14
`aos pobres de espírito
se abrirá o Reino dos Céus'".
Mateus 5
"A fé", continua Hugo de S. Vitor,
"a primeira das virtudes,
se aproxima da humildade,
porque, conforme diz
a Epístola aos Hebreus,
`Sem fé é impossível
agradar a Deus',
e também
`o justo vive da fé'.
Hebreus 11".
(Fonte: cristianismo.org.br)
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