segunda-feira, 2 de abril de 2018
Pressupostos do Aprendizado 7
17. Três características da escola vitorina de espiritualidade.
Estas notas pretendem tecer alguns comentários a respeito do Opúsculo sobre o Modo de Aprender de Hugo de São Vitor, um texto que possui características marcantes da espiritualidade da escola de São Vitor. Por este motivo, para chegarmos ao texto mesmo do opúsculo, apontamos primeiramente algumas das escolas de espiritualidade da tradição cristã, explicamos no que elas consistem, no que diferem e o que possuem em comum, qual a razão de existirem e a possibilidade de muitas outras ainda virem a existir. Mostramos depois como a escola de São Vitor surgiu e se situa historicamente entre as diversas formas de ascese cristã.
Antes de abordarmos o próprio texto do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, porém, na impossibilidade de delinear todo o conjunto da ascese que nos é descrita pelos vitorinos, queremos pelo menos chamar a atenção sobre três de suas características mais expressivas e que ela possui como que por excelência.
18. Primeira característica.
A primeira das características da escola vitorina é um sentido singularmente perfeito de equilíbrio e atenção para com os diversos aspectos da psicologia humana envolvidos no esforço de ascese e, de modo muito especial, uma profunda reverência e sensibilidade pelo trabalho simultâneo a ser empreendido pelas faculdades da inteligência e vontade. A espiritualidade vitorina quer vencer simultaneamente tanto o desejo do mal como a ignorância do bem, busca a Deus tanto pelo amor como pela sabedoria, está perfeitamente consciente de que o amor não floresce senão no solo da fé, ao mesmo tempo em que vê claramente que é o amor que conduz a fé à sua plena vida.
19. Segunda característica.
A segunda característica da escola vitorina é o papel de singular importância que o estudo das Sagradas Escrituras desempenha no desenvolvimento da vida espiritual, papel que, quase como que num desenvolvimento natural da característica precedente, os vitorinos não apenas nos deram o exemplo pela vivência como também a explicação pela doutrina. Percebe-se claramente nos escritos dos vitorinos que estamos diante de pessoas que não apenas amavam as Escrituras, como também que se alimentavam delas num sentido impressionantemente semelhante às exortações que, desde o início do século 20, os Sumos Pontífices da Igreja Católica têm feito a todos os fiéis para que se alimentassem da Sagrada Eucaristia. Não conhecemos nenhum outro exemplo tão luminoso, em toda a história da Igreja, daquele princípio que o Concílio Vaticano II enunciou em sua constituição Dei Verbum sobre as Sagradas Escrituras:
"A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras
da mesma forma como o próprio corpo do Senhor,
já que, principalmente na Sagrada Liturgia,
sem cessar toma tanto da palavra de Deus
como do corpo de Cristo
o pão da vida e o distribui aos fiéis".
Const. Dei Verbum, 21
Os escritos dos vitorinos nos dão razões profundíssimas do motivo pelo qual isto é exatamente assim, um exemplo de como isto se torna realidade e nos mostram como isto, inserido dentro de um adequado contexto, conduz à vida de contemplação.
Sem a intenção de entrar neste que é inteiramente outro assunto, recolhemos algumas passagens, a título de ilustração, dos sermões de Hugo de São Vitor, em que ele se refere às Escrituras:
SERMO 4 :
"Devemos buscar nosso alimento", diz Hugo de São Vitor,
"pelo estudo das Escrituras.
Os maus não apetecem este alimento,
conforme está escrito:
`Sua alma aborrecia todo alimento,
e chegaram às portas da morte'.
Salmo 106, 18
Ele, porém, é dado aos bons,
conforme está escrito:
`Enviou a sua palavra para curá-los,
para livrá-los da ruína'.
Salmo 106, 20
SERMO 5 :
"Devemos preparar nosso alimento
pelo mais frequente e diligente estudo
e meditação das Sagradas Escrituras.
Por meio deste alimento a alma se robustece,
por ele engorda,
por ele adquire força para a boa obra,
e por ele é conduzido sem defeito à perfeição".
SERMO 11 :
"Nossa dieta são as Sagradas Escrituras,
que é servida para nós de modos diversos,
na medida em que nos é ensinada
conforme a diversa capacidade dos ouvintes.
Ora ela é servida aos ouvintes e aos leitores
pela história, ora pela alegoria,
ora pela moralidade, ora pela anagogia;
ora pela autoridade do Velho Testamento,
ora pela autoridade do Novo;
ora envolvida no véu do mistério,
ora em sua forma pura, límpida e aberta".
SERMO 21 :
"A boca é o símbolo da inteligência.
Assim como recebemos o alimento pela boca,
assim também é pela virtude da inteligência
que recebemos o alimento da divina leitura.
Os dentes significam a meditação,
pois assim como pelos dentes trituramos
o alimento que recebemos,
assim também pelo ofício da meditação
discutimos e dividimos mais sutilmente
o pão recebido pelo estudo das Escrituras".
SERMO 85 :
"Vejamos agora, irmãos caríssimos,
se somos verdadeiramente da linhagem
de nosso bem aventurado Pai Santo Agostinho,
isto é, se somos seus imitadores tal como o devemos ser.
Vejamos se, contemplando o seu exemplo,
amamos a palavra de Deus,
estudando-a, meditando-a,
escrevendo sobre ela,
ensinando-a conforme a graça
que nos foi concedida;
se imitamos, enfim, seu exemplo,
vivendo com todas as nossas forças
sua honestíssima religião".
SERMO 95 :
"O Senhor disse, falando a Moisés
sobre a mesa da proposição
que este deveria fazer:
`Farás também uma mesa de pau de cetim,
que tenha dois côvados de comprimento,
um côvado de largura
e um côvado e meio de altura.
E cobri-la-ás de ouro puríssimo,
e far-lhe-ás um lábio de ouro em roda...
... e porás sempre sobre a mesa
os pães da proposição na minha presença'.
Êxodo 25, 23/24/30
O que é esta mesa, caríssimos,
senão a Sagrada Escritura?
Pois todas as vezes em que
ela nos exorta a bem viver,
tantas são as vezes em que
ela nos oferece o pão da vida.
Lemos que esta mesa é feita de pau de cetim,
pois a verdade da Sagrada Escritura
não se corrompe pelo envelhecimento.
À semelhança da mesa da proposição,
a Escritura também possui dois côvados de comprimento,
pois nos ensina as duas partes da fé,
aquela pela qual cremos no Criador
e aquela pela qual cremos no Redentor.
Possui um côvado e meio de altura
quando nos ensina qual é a altura da esperança
e o início da contemplação.
Possui um côvado de largura
quando nos ensina qual é a largura da caridade.
Esta mesa espiritual é inteiramente coberta
de ouro puríssimo,
pois refulge em toda a sua extensão
não apenas pelos milagres,
como principalmente pela caridade da sabedoria celeste.
O lábio de ouro em sua roda são
os ensinamentos dos santos doutores,
não apenas porque a circundaram
em toda a sua extensão
sem nada haverem deixado
que não tivessem observado,
como também porque se apoiaram
em todos os seus ângulos
para mostrarem aos maus a sua malícia
e aos bons ensinarem o melhor.
Os pães da proposição
são as palavras da sabedoria celeste,
corretamente chamados de pães da proposição,
porque a doutrina da salvação
deve ser proposta sempre a todos os fiéis
e nunca deve faltar na Igreja a palavra de auxílio,
que o Senhor quis que abundasse incessantemente
até o fim dos tempos para todos aqueles
que tem fome e sede de justiça
e que se manifestasse ao mundo
através dos pregadores da verdade
que vivem em sua presença".
Deve-se acrescentar a estas citações a observação segundo a qual esta mesma coleção dos 100 Sermões de Hugo de São Vitor, organizada por ele mesmo, embora contenha inúmeras exortações à prática das virtudes, conforme seu autor no-lo indica no prólogo e o torna patente ao longo da sua obra, não foi escrita, entretanto, tendo como seu principal objetivo a exortação à virtude, mas sim o de propor aos seus ouvintes algo pelo qual pudesse exercitar-lhes o entendimento sobre o modo pelo qual o homem pode aproximar-se das Escrituras para utilizá-las em favor de seu crescimento espiritual.
20. Terceira característica.
Uma terceira característica da espiritualidade vitorina está no papel que a escola e o estudo desempenham na ascese cristã. Hugo de São Vitor foi provavelmente, entre os grandes teólogos da tradição cristã, aquele que mais profundamente se preocupou com o problema pedagógico. Pode-se dizer que ele desenvolveu os princípios de uma pedagogia em que o estudante é como que naturalmente conduzido a uma busca consciente e eficaz da santidade e em que o estudo, conduzido segundo certos critérios ao mesmo templo amplos e claros, não existe apenas para desenvolver determinadas habilidades, fornecer conhecimentos gerais ou mesmo o conhecimento da ascese cristã, mas ele próprio se torna um dos instrumentos desta ascese. Fora dos vitorinos houve na Igreja muitos santos que por um carisma pessoal seguiram em suas vidas estes mesmos princípios; entre eles são muito nítidos os exemplos que nos foram deixados neste sentido por Santo Tomás de Aquino e Santo Antônio de Pádua. Os vitorinos, porém, foram aqueles que procuraram, ademais disso, investigar explicitamente os próprios princípios pelos quais isto se torna possível, para assim não apenas darem o exemplo como também ensinarem como se fazia. Já tivemos a oportunidade de comentar que todo este esforço dispendido por estes que assim procederam não se deveu a um capricho pessoal ou a uma paixão desenfreada pelo estudo; tratavam-se, ao contrário, de homens santos motivados para tanto pelo desejo de serem fiéis ao mandamento de ensinar que nos foi deixado por Cristo, e que Ele mesmo no-lo pediu como prova de amor.
21. Uma dificuldade a respeito do título do Opúsculo sobre o Modo de Aprender.
Não se conhece a história do Opúsculo sobre o Modo de Aprender, sobre como foi escrito ou como foi utilizado. Ele simplesmente nos foi transmitido como constando entre as obras de Hugo de São Vitor.
Seu nome, conforme impresso na Patrologia Latina de Migne, é "De Modo Dicendi et Meditandi", o que significa: "Sobre o Modo de Dizer e de Meditar". Entretanto, considerando o seu conteúdo, e considerando que na língua latina entre as palavras que traduzem os verbos dizer e aprender existe apenas a diferença de um "s", cremos que provavelmente em algum momento esta pequena letra foi suprimida por engano, não necessariamente por parte dos editores da Patrologia, mas talvez até mesmo por algum dos primeiros copistas medievais, e que o verdadeiro nome do opúsculo seja "De Modo Discendi", ou "Sobre o Modo de Aprender".
Seja como for, é o título "Sobre o Modo de Aprender" aquele que nos apresenta de modo mais fiel o conteúdo deste opúsculo. O pequeno trabalho se inicia com uma declaração sobre qual é o "princípio do aprendizado", para logo em seguida versar em sua quase totalidade sobre o estudo e o aprendizado.
No final do trabalho o autor anuncia que irá tratar do tema da eloqüência e das obrigações que a acompanham. Estes últimos parágrafos poderiam justificar, aparentemente, o título tal como se encontra impresso na Patrologia. Observada mais atentamente, porém, esta décima segunda e última subdivisão do opúsculo trata na realidade daqueles que desejam "conhecer e ensinar", e daqueles que desejam "ensinar o bem". Seu verdadeiro tema é, portanto, o ensino, o outro lado do aprendizado. Este tema parece aí ter entrado disfarçado sob as aparências da eloqüência porque na antigüidade a eloqüência era uma qualidade tida por todos em elevadíssimo apreço, e mesmo por muitos quase que compulsivamente procurada como uma obrigação e como um bem que tivesse valor por si mesmo. Hugo de São Vitor, como sábio professor, reconhecia a presença desta visão distorcida em muitos dos alunos que se lhe apresentavam e assim quis, no final deste opúsculo, inserir o bem da eloqüência no contexto da atividade de ensinar, mostrando que sem isto ela se torna algo destituído de valor. Na realidade, todo o valor perene de qualquer ensino está quase que inteiramente concentrado no seu conteúdo de verdade, e só muito secundariamente na sua eloqüência.
22. Natureza do Opúsculo sobre o Modo de Aprender.
A maioria dos doze subtítulos em que se subdivide o Opúsculo sobre o Modo de Aprender são passagens que se encontram também em outras obras mais extensas de Hugo de São Vitor. Merece uma menção especial o fato de que um número considerável das mais importantes se encontram no Comentário ao Eclesiastes. Embora não se saiba nada a respeito da história deste opúsculo, a julgar pelas características da psicologia do ensino ministrado por Hugo de S. Vitor, parece-nos ser mais provável que tenha sido ele próprio que, depois de haver escrito as outras obras em que também se encontram estas passagens, as tenha compilado reunindo-as neste opúsculo para que servissem aos estudantes da escola de São Vitor como pontos de referência que não conviria serem perdidos de vista.
(Fonte: cristianismo.org.br)
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